Corações Algemados
Era uma noite fria de abril, dessas que envolvem a cidade com um silêncio estranho, onde as ruas parecem um cenário de filme. O sargento Henrique estava em mais um plantão, fardado, atento, cumprindo o dever que escolheu para a vida: proteger, servir, enfrentar o inesperado. A patrulha seguia tranquila, até que, de repente, ele e seu parceiro foram chamados para uma ocorrência de rotina: uma jovem causando tumulto perto de uma praça abandonada.
Ao chegarem, a cena parecia corriqueira: uma moça sentada no chão, cabelo desalinhado, olhos que encaravam o vazio com uma teimosia curiosa.
— Levante-se, moça, disse Henrique com a voz firme, enquanto segurava as algemas no cinto. Ela ergueu os olhos, sem medo, sem palavras, mas foi naquele instante que algo diferente aconteceu. Não era o olhar de alguém desafiador ou perdido. Era o olhar de alguém que carregava histórias demais para contar.
Henrique a algemou com cuidado, quase receoso, como se aquele gesto fosse muito mais do que um protocolo policial. No caminho para o camburão, ela sorriu de canto, um sorriso irônico, mas ao mesmo tempo doce.
— Gostaria de saber por que tanta gentileza, moço, murmurou ela, quebrando o silêncio. Henrique não respondeu. Como explicar que aquele rosto já não sairia de sua mente? Como explicar que o coração dele, escondido sob a rigidez da farda, havia acelerado?
O trajeto até a delegacia foi silencioso. Ela, encostada no canto do banco, observava o vazio pela janela. Henrique, ao volante, tentava não olhar pelo retrovisor, mas falhava. Quem era aquela moça? Qual era a história por trás daqueles olhos? Quando desceu do camburão, ainda algemada, ela se virou e perguntou:
— Henrique, não é?
O sargento, surpreso, apenas assentiu.
— Vai me soltar ou prender meu coração também?
Era uma brincadeira, mas ele sentiu como uma flecha certeira. O tempo seguiu, e aquele encontro, que começou com algemas, terminou com algo muito maior. Dias depois, Henrique descobriu o nome dela: Marina. Ela não era nenhuma criminosa, apenas alguém que estava no lugar errado, na hora errada, tentando fugir de um passado que a atormentava. Ele, então, decidiu conhecê-la melhor — fora das viaturas e dos relatórios.
Henrique e Marina não eram a combinação mais provável. Ele, um policial dedicado, de hábitos firmes e vida organizada. Ela, uma jovem que aprendia a reconstruir os próprios caminhos, alguém que o destino havia jogado em seus braços naquela noite fria. Mas o amor é curioso e, às vezes, nasce nos momentos mais improváveis, no meio do dever, no meio do caos.
Anos depois, Henrique brincava que aquele havia sido "o crime perfeito": Marina roubara o coração de um policial no cumprimento do dever. E ela sempre respondia, com seu sorriso travesso:
— Foi você quem algemou primeiro. Só prendi de volta.
E assim, naquela noite que deveria ser mais uma simples ocorrência, o sargento Henrique descobriu que até os corações em serviço estão sujeitos a render-se ao amor. Porque, no fim das contas, todos nós somos prisioneiros de alguém.
Lucileide Flausino Barbosa
Enviado por Lucileide Flausino Barbosa em 18/12/2024