Confissões ao vento
O mais bonito retrato é o da própria natureza, pois, Deus com humildade fez sem tintas a sua beleza.
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Entre a Moral e a Fome
Carlos encarava a prateleira do mercado como quem contempla um abismo. De um lado, as gôndolas recheadas de alimentos pareciam zombar de sua miséria; do outro, o peso da moral que carregava desde menino, quando sua mãe dizia que “o que é dos outros nunca será seu”. Mas ali, naquele instante, o "certo" e o "errado" travavam uma batalha feroz no campo de batalha vazio de seu estômago e, pior, no de seu filho.

A poucos passos dali, Vinícius, de 6 anos, remexia a sacola vazia de compras, acreditando que, como sempre, o pai encontraria uma solução mágica. Carlos sentia uma pontada no coração toda vez que o menino olhava para ele com olhos confiantes, como se ainda não tivesse percebido que o mundo pode ser cruel, e que às vezes até os pais falham.

Havia semanas que o "currículo deixado" não resultava em nenhuma ligação. A esperança, que antes surgia a cada entrevista, agora parecia uma piada amarga. O dinheiro acabara, os amigos se esgotaram, e a família distante era apenas uma lembrança de tempos melhores.

Ele olhava para o pacote de arroz como se fosse a última âncora antes de um naufrágio. “Só isso. Só hoje”, pensava. Sentia o suor escorrendo pela testa enquanto avaliava o movimento dos caixas e câmeras. Uma voz ecoava em sua mente: “E se me pegarem? E se Vinícius me ver sendo preso? E se eu for condenado a nunca mais ver meu filho?”

De repente, a imagem de Vinícius no dia anterior lhe veio à mente, chorando de fome. O menino dizia que a barriga "cantava" porque estava vazia. Carlos engoliu em seco. O que vale mais: a honra de seguir as regras ou a sobrevivência de quem você ama?

A mão trêmula de Carlos se aproximou do pacote. Era pequeno, discreto. Caberia fácil sob a camiseta larga. Mas no exato momento em que ele o pegou, sentiu um peso nos ombros. Não era a mercadoria; era o fantasma da sua própria consciência. Ele pensava na mãe, que se sacrificara tanto para criá-lo com dignidade. Pensava no futuro, na imagem que queria deixar para Vinícius.

O pacote voltou para a prateleira. Ele puxou Vinícius pela mão e saiu do mercado com passos apressados. A fome ainda rugia, mas a culpa seria um peso insuportável.

Do lado de fora, no entanto, uma mulher desconhecida os abordou. Ela segurava uma sacola com mantimentos básicos. “Vi você lá dentro. Acho que está precisando”, disse com um sorriso pequeno, mas genuíno.

Carlos sentiu os olhos se encherem de lágrimas enquanto agradecia. Pela primeira vez em semanas, uma fagulha de esperança renascia. Talvez o mundo fosse cruel, mas também havia espaço para gestos de compaixão. Ele prometeu a si mesmo que, assim que conseguisse se reerguer, seria ele a oferecer uma sacola cheia a alguém que encarasse o mesmo abismo.
Lucileide Flausino Barbosa
Enviado por Lucileide Flausino Barbosa em 03/01/2025
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