A Testemunha Calada
Dona Amália era uma mulher de hábitos simples e rotina meticulosa. Aos 65 anos, viúva há duas décadas, vivia sozinha em uma casa modesta perto da praça central de Vila Serena. Seu mundo girava em torno do pequeno jardim que cultivava com dedicação. Rosas, margaridas e algumas ervas medicinais preenchiam os canteiros alinhados. Era ali que ela encontrava paz.
Naquela manhã de domingo, o sol nascera preguiçoso entre nuvens cinzentas. Dona Amália regava as plantas quando notou algo fora do comum. Na esquina, onde costumava estacionar apenas o caminhão do leiteiro, havia um carro prateado parado de forma estranha, com a porta do motorista ligeiramente aberta.
Intrigada, ela deixou o regador de lado e caminhou até o veículo. Ao se aproximar, sentiu um calafrio. Havia algo perturbador no silêncio que emanava dali. Com hesitação, espiou pelo vidro e viu o impossível: um homem estava caído no banco do motorista, com a cabeça pendendo para o lado, preso pelo cinto de segurança. O sangue seco manchava sua camisa e o estofado, e um buraco no lado direito da cabeça dizia tudo. Ele fora executado.
O susto fez Amália dar um passo para trás, cobrindo a boca com as mãos. Por alguns segundos, ficou imóvel, tentando compreender o que tinha acabado de ver. Finalmente, recobrou a presença de espírito e correu para dentro de casa, onde discou para a polícia com dedos trêmulos.
Pouco tempo depois, o som das sirenes quebrou o silêncio da rua. Viaturas chegaram em peso, e logo a esquina estava tomada por policiais. O delegado Moretti, um homem de meia-idade com olhar perspicaz, assumiu o caso. Ele cumprimentou Dona Amália com um aceno curto antes de começar a observar a cena do crime.
“Dona Amália, viu algo ou alguém suspeito por aqui?”, perguntou, enquanto anotava em um bloco. Ela balançou a cabeça negativamente, mas evitou encará-lo nos olhos.
Enquanto os peritos trabalhavam no carro, Moretti explorava o interior do veículo. No banco do passageiro, encontrou uma carteira de couro. Dentro dela, documentos identificavam o morto como Jonas Queiroz, um contador conhecido por seu envolvimento em esquemas de lavagem de dinheiro para o crime organizado. No porta-luvas, um caderno chamou sua atenção. Folheando as páginas, deparou-se com uma frase rabiscada na contracapa: “A testemunha viu tudo. Protejam-na.”
O delegado sentiu o peso da mensagem e olhou para Dona Amália, que observava a movimentação à distância. Ele voltou até ela e reformulou a pergunta. “Tem certeza de que não viu nada, nem ninguém, senhora?”
Amália continuou negando. “Nada, delegado. Só vi o carro parado quando fui regar minhas plantas.” Sua voz era firme, mas suas mãos, entrelaçadas com força, traíam sua insegurança. Ela sabia que estava escondendo algo.
Na verdade, Dona Amália tinha visto um homem sair do carro. Era alto, usava um casaco escuro e parecia olhar para os lados antes de desaparecer em um beco. Mas ela decidira guardar essa informação para si. Anos de vida simples haviam lhe ensinado que, em algumas situações, o silêncio era mais seguro que a verdade.
À medida que o dia avançava, o movimento na rua foi diminuindo. Os policiais recolheram evidências, e o corpo foi removido. O delegado Moretti, no entanto, não deixou o caso descansar. Ele sabia que havia mais naquela cena do que parecia.
Naquela noite, Dona Amália fechou as cortinas e verificou todas as trancas das portas e janelas. O medo era palpável. Sentia que algo sombrio a cercava. A frase no caderno ecoava em sua mente como um presságio. Quem havia escrito aquelas palavras sabia que ela tinha visto o homem. E se sabia disso, também poderia saber onde ela morava.
No silêncio de sua casa, ela sentou-se em sua poltrona favorita e tentou se distrair com um programa de televisão. Mas a tensão era esmagadora. Cada farol que passava pela rua parecia uma ameaça, cada ruído, um alerta. Ela estava presa em um dilema: falar e se tornar um alvo ou calar-se e viver no medo.
Quando o relógio marcava meia-noite, um som a fez gelar: uma leve batida na janela da sala. Seu coração disparou. Por um instante, pensou em ligar para a polícia, mas desistiu. Apagou as luzes, segurou um crucifixo pendurado na parede e esperou. A sensação de que alguém a observava era inescapável.
Ela sabia que aquela noite seria longa – talvez a mais longa de sua vida.
Lucileide Flausino Barbosa
Enviado por Lucileide Flausino Barbosa em 03/01/2025