Confissões ao vento
O mais bonito retrato é o da própria natureza, pois, Deus com humildade fez sem tintas a sua beleza.
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O Coveiro e a Viúva
Em uma pequena cidade do interior, chamada Morondópolis, onde todos se conheciam e as histórias corriam mais rápido que a fofoca do fim de semana, vivia Dona Geralda, uma senhora de uns 60 e poucos anos, com cabelos brancos e sorriso fácil, mas com um coração que havia se partido depois de perder seu esposo, o Seu Amâncio, que, de tão quieto, parecia mais uma sombra do que um homem.

Amâncio, que havia sido casado com Geralda por mais de 40 anos, faleceu inesperadamente em uma manhã de terça-feira. A cidade inteira estava em choque. Afinal, ele não tinha problemas de saúde, nem sinais de qualquer tipo de doença. Simplesmente foi. Como um pássaro que decide voar sem avisar.

No dia do sepultamento, o céu resolveu fazer companhia ao luto, e uma chuva fina começou a cair, transformando o velório em algo digno de um filme de drama, só que com mais lama e menos glamour. Geralda, de vestido preto, com um luto que parecia não ter fim, estava visivelmente arrasada, mas como toda mulher de coragem, tentava manter a postura, enxugando as lágrimas com um lenço florido que havia comprado na feira.

O coveiro, Seu Zé, era um homem discreto e, naqueles tempos, considerado um dos solteiros mais cobiçados da cidade, o que Dona Geralda não sabia. Ele era um homem de fala baixa, mas de olhar atento. Ele ficava lá, sem pressa, cavando os túmulos com uma calma quase zen, como se tivesse todo o tempo do mundo. Mas, naquele dia, ele estava mais atento a Dona Geralda do que ao buraco que estava abrindo.

Enquanto ela observava o caixão sendo abaixado na chuva, Seu Zé se aproximou com sua pá e, com um sorriso nervoso, disse:

— Dona Geralda, a senhora está bem? A chuva não ajuda, né?

Geralda, que já estava de saco cheio da situação e um pouco cansada do clima melancólico, olhou para ele e respondeu com um sorriso torto:

— Bem eu? Ah, Seu Zé, estou melhor do que o meu falecido Amâncio, isso eu posso te garantir.

Os dois riram, mas a risada foi interrompida pela voz grave do padre, que, com uma oração cansada, disse umas palavras sobre a alma de Seu Amâncio. Enquanto isso, Dona Geralda não tirava os olhos do coveiro. Afinal, ele estava ali, firme, de chapéu suado, com uma expressão de quem já havia lidado com muito mais mortos do que vivos. E, por alguma razão que ela não entendia muito bem, ele tinha algo de encantador.

Quando a cerimônia acabou e o caixão foi finalmente baixado na terra molhada, Seu Zé, com a mesma suavidade com que havia enterrado aquele, ofereceu à viúva um lenço seco.

— Para a senhora não pegar frio, Dona Geralda.

Ela olhou para ele, sentindo uma mistura de desconforto e simpatia. Aquilo tudo parecia tão inusitado! Em meio à tragédia e à lama, ela começava a ver algo nos olhos do coveiro que a fazia sorrir, e, quem sabe, sentir um pequeno calor no peito.

— Muito obrigada, Seu Zé. Parece que o senhor tem um jeito com a terra e com as pessoas, não é?

O coveiro sorriu timidamente e respondeu:

— A gente aprende com o tempo, Dona Geralda. Às vezes, o melhor é enterrar as mágoas, e não só os mortos.

Geralda não sabia se aquilo era um trocadilho ou se ele realmente estava filosofando sobre a vida e a morte. Mas o que ela sabia era que a chuva tinha diminuído, e a sensação de perda começava a se misturar com algo mais curioso, algo que ela não tinha sentido há muitos anos: o interesse por outro homem.

Dali em diante, Geralda e Seu Zé começaram a se encontrar com mais frequência. Ao invés de ir sozinha ao cemitério para visitar o marido, ela ia acompanhada do coveiro, e a conversa se tornava mais leve. Eles falavam sobre a vida, sobre a chuva, sobre as plantas que cresciam nas sepulturas, sobre qualquer coisa.

Com o passar dos meses, Dona Geralda se deu conta de que, durante as visitas, seu coração parecia um pouco mais leve. O coveiro, que nunca dissera muito, tinha uma sabedoria que a fazia rir, mesmo nos dias mais tristes. E, então, ela se perguntou: “Por que não dar uma chance à vida novamente?”

E foi assim que, em uma tarde de sol depois de uma tempestade, ela tomou coragem e, ao ver Seu Zé em seu habitual trabalho, disse:

— Seu Zé, acho que já entendi o que o senhor queria dizer quando disse para enterrar as mágoas... Eu estava enterrando meu passado e talvez tenha deixado uma oportunidade escapar.

Seu Zé, com aquele sorriso encantador que ele só usava quando se sentia seguro, olhou para ela e respondeu:

— Acho que a senhora tem razão, Dona Geralda. A vida, como a chuva, tem seus altos e baixos, mas sempre vem o sol depois da tempestade.

E, foi assim, debaixo de uma chuva e com o falecimento do marido, que Dona Geralda encontrou um novo motivo para sorrir. Não mais pela saudade do passado, mas pela possibilidade de um futuro bem-humorado ao lado do coveiro mais charmoso de Morondópolis.
Lucileide Flausino Barbosa
Enviado por Lucileide Flausino Barbosa em 04/01/2025
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