O Romance do Venezuelano e a Caipira
Na pequena cidade de Santo Antônio, escondida entre as serras do interior, ninguém jamais imaginaria que o destino iria juntar dois mundos tão diferentes. Ela era Maria da Conceição, ou simplesmente Cidinha, uma caipira arretada, de pele tostada pelo sol e cabelos negros como a noite, que passava o dia cuidando das vacas, das galinhas e do seu sítio. Ele era José, ou melhor, José Antonio, um venezuelano recém-chegado à cidade, com sotaque carregado e um olhar que refletia uma vida que ele não queria mais lembrar. Estava na cidade há poucos meses, tentando reconstruir sua vida após a fuga da crise em seu país.
Os dois se conheceram em um domingo de feira, quando Cidinha foi até a praça para vender queijos e doces que fazia com a ajuda da mãe. José, por sua vez, caminhava pelas barracas, observando o movimento, ainda se acostumando com as pessoas e o calor que parecia sufocar sua alma. A primeira impressão foi de um choque cultural: ele, perdido na imensidão de um Brasil que ainda não compreendia, ela, dona do mundo no seu pedaço de terra.
Ele se aproximou da barraca de queijos e, com um sorriso tímido, perguntou em português com sotaque carregado:
— Quantos reais custa o queijo?
Cidinha, com sua simplicidade e aquele olhar desconfiado que as caipiras costumam ter para com os forasteiros, respondeu sem rodeios:
— O queijo é bom, moço, mas não é baratinho não, viu?
Ela falava de forma direta, com o jeito de quem não tinha paciência para perder tempo. José, um pouco confuso com a resposta, ainda assim tentou puxar conversa:
— É... eu... sou de Venezuela... você conhece lá?
Cidinha arregalou os olhos, sem saber o que dizer. Conhecer? Venezuela? Ela só conhecia o pedaço de terra onde morava, as montanhas ao redor e o rio que passava perto da casa. Ela só sabia que lá era longe demais e, na sua cabeça, a Venezuela se resumia a um nome difícil de pronunciar.
— Não sei não, moço. Aqui é longe de tudo, só sei que a vida por aqui é dura, mas a gente vai levando, né?
José, percebendo que a conversa não ia muito longe, tentou mais uma vez, com a esperança de quebrar o gelo:
— Aqui é bom, né? Mas, sabe, lá em Caracas, as coisas eram... diferentes.
Cidinha, com o olhar de quem queria mesmo era vender seus queijos e voltar para casa, respondeu com um sorriso forçado:
— Olha, moço, se lá é diferente, aqui também é. A vida aqui é boa, mas só se você aprender a dar conta da roça. E não é fácil não.
O vento quente daquela tarde parecia unir os dois de forma estranha. Cidinha, que jamais pensaria em se envolver com alguém de tão longe, sentia uma curiosidade por aquele estrangeiro que parecia tão perdido quanto ela se sentiria em sua terra. E José, por outro lado, sentia uma admiração pela simplicidade daquela mulher, que parecia carregar no rosto a força de todas as tempestades que já havia enfrentado na vida.
Nos dias seguintes, José passou a ir mais vezes à feira, sempre tentando conversar com Cidinha, mas as palavras não fluíam como ele esperava. Ela parecia sempre muito direta, e ele, com sua educação venezuelana, ficava confuso com as respostas curtas e objetivas. No entanto, cada vez que ele a via, sentia uma atração crescente pela sua firmeza, pela maneira como ela parecia dominar a sua vida sem precisar de muito. Mas, ao mesmo tempo, o que ele não entendia era o quanto Cidinha parecia fechar-se em sua própria bolha, sem entender o que ele queria compartilhar sobre sua história, suas lutas e suas saudades.
Certa tarde, ele se animou e foi até a casa dela, com a desculpa de pedir um pouco de leite fresco para fazer café. Cidinha, sem desconfiar, o convidou para entrar. A casa era simples, mas acolhedora, com o cheiro forte do café coado e o som das vacas do lado de fora.
— Pode sentar, moço. Não tem muito luxo aqui, mas é o que a gente tem.
José sentou-se na cadeira de madeira, observando a casa simples, o fogão de lenha e os pequenos detalhes que Cidinha parecia cuidar com tanto zelo. Tentou puxar conversa, como de costume, mas algo no silêncio que tomava o ambiente fazia com que ele sentisse uma distância quase imensurável entre eles.
— Cidinha, você tem filhos? — perguntou ele, tentando algo mais pessoal.
Ela olhou para ele com os olhos desconfiados, como se a pergunta fosse um teste.
— Não, não tenho. A vida por aqui não dá tempo de pensar em muita coisa. O trabalho é pesado, a gente mal tem tempo pra descansar. E você? Tem família?
José hesitou por um momento, sentindo uma pontada de dor.
— Tenho sim, minha família está na Venezuela. Mas é complicado, por causa da crise...
Cidinha, como se já soubesse o que ele iria dizer, apenas assentiu, sem muito entusiasmo. Ela já tinha ouvido muitas histórias sobre o que estava acontecendo fora de sua realidade.
— É... a vida é dura pra todo mundo, né?
A conversa seguiu de forma tensa e, apesar das tentativas de José de se aproximar, Cidinha permanecia distante. Ela era uma mulher de poucas palavras, mas com uma força que parecia ser mais forte do que qualquer sentimento romântico. Ela não entendia José, não compreendia seus gestos gentis e suas tentativas de criar uma conexão. Para ela, ele era apenas mais um homem perdido, como tantos outros que passavam pela cidade, sem entender a dureza da vida na roça.
Ele, por sua vez, percebia a fragilidade das palavras de Cidinha, como se ela tivesse medo de abrir seu coração para ele. Afinal, como poderia alguém de tão longe entender as lutas e dores que ela enfrentava todos os dias, com a terra como única companhia? Ele tentava entender, mas parecia que suas raízes eram tão diferentes quanto a distância entre os dois mundos.
Naquele dia, depois de um longo silêncio, José se levantou e, com um sorriso triste, disse:
— Acho que estou mais perdido do que pensei, Cidinha.
Ela apenas olhou para ele, com um sorriso amargo nos lábios.
— Não é sobre estar perdido, moço. É sobre saber onde se está. E isso, eu já sei. A questão é saber se você vai ficar por aqui ou vai voltar pro seu lugar.
Ele olhou para ela, com a certeza de que, naquele momento, não havia mais nada a fazer. Seus mundos eram distintos demais, e o que ele procurava em sua terra não seria encontrado na roça de Cidinha.
E, assim, ele se foi, deixando atrás de si o cheiro do café e a lembrança de um romance que, por mais que tentasse, jamais se entenderia completamente.
Lucileide Flausino Barbosa
Enviado por Lucileide Flausino Barbosa em 05/01/2025