Confissões ao vento
O mais bonito retrato é o da própria natureza, pois, Deus com humildade fez sem tintas a sua beleza.
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O Tango na Sepultura
Havia algo de sombrio e fascinante no relacionamento de Antônia e Geraldo. Era um amor que parecia se alimentar de tempestades. As discussões entre os dois eram tão frequentes quanto os dias da semana, e, nas vezes em que a voz de Antônia se elevava acima da de Geraldo, lá vinha a ameaça:

— Um dia, quando você morrer, eu vou dançar na sua sepultura. E será um tango!

Os vizinhos ouviam e riam, achando que era só mais uma bravata de Antônia, sempre dramática. Mas no fundo, ela não brincava. As mágoas acumuladas ao longo dos anos eram como uma ferida que ela fazia questão de expor, um lembrete do peso que carregava por amar e odiar Geraldo ao mesmo tempo.

O tempo passou, como passa para todos, mas o casal continuava com suas brigas. Até que, um dia, de forma inesperada, Geraldo sofreu um infarto fulminante. A notícia caiu como um trovão em um céu aparentemente tranquilo. Antônia, com um misto de choque e alívio, foi ao velório com o olhar distante, mas não derramou uma lágrima sequer.

No dia do enterro, enquanto os amigos e parentes ainda suspiravam pela perda, Antônia permanecia quieta, calculando os minutos. Quando o caixão desceu à cova e os últimos punhados de terra foram lançados, ela ergueu o olhar para o céu e viu o sol brilhar imponente.

Era meio-dia. O momento perfeito.

Antônia caminhou até o túmulo recém-fechado e chamou o amigo Tonico, um velho conhecido que tocava acordeão. Ele tinha sido avisado da promessa e não estranhou quando Antônia lhe pediu que tocasse um tango.

E assim, ali mesmo, sob o calor escaldante do sol, entre olhares incrédulos e murmúrios de reprovação, Antônia cumpriu sua palavra. Com passos firmes, começou a dançar sobre a terra ainda fresca. Seus movimentos eram precisos, carregados de emoção, como se cada giro, cada passo, fosse uma libertação das correntes que ela havia suportado por tanto tempo.

O som do acordeão preenchia o silêncio desconfortável do cemitério. Não havia lágrimas, apenas a força de uma promessa cumprida.

— Ele nunca acreditou em mim — murmurou Antônia enquanto girava. — Agora acredita.

Quando terminou, com a respiração ofegante e o coração leve, Antônia olhou para o túmulo pela última vez e sussurrou:

— Esse tango não foi por ódio, Geraldo. Foi por tudo que vivemos, por tudo que suportei. Agora, estamos quites.

E então, com a mesma força com que vivia, Antônia se afastou, deixando para trás as cinzas de um amor tumultuado, mas verdadeiro à sua maneira.




Lucileide Flausino Barbosa
Enviado por Lucileide Flausino Barbosa em 11/01/2025
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