Confissões ao vento
O mais bonito retrato é o da própria natureza, pois, Deus com humildade fez sem tintas a sua beleza.
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A Mulher que Limpava o Cemitério
Todas as manhãs, antes do sol aquecer as pedras frias, dona Eulália já estava lá, varrendo o chão do cemitério. Era uma figura discreta, quase invisível para quem passava. Com um lenço cobrindo os cabelos grisalhos e as mãos marcadas pelo tempo, ela trabalhava em silêncio, como se a poeira que levantava contivesse segredos que só ela podia compreender.

Não era apenas uma faxina. Cada folha seca que ela recolhia, cada flor murcha que substituía por outra fresca, era feito com a delicadeza de quem cuida de algo profundamente amado. Quem a visse poderia pensar que era apenas uma mulher solitária cumprindo uma tarefa, mas para Eulália, o cemitério era mais do que um lugar de trabalho: era o seu lar espiritual, o único lugar onde ela ainda se sentia viva.

Eulália perdeu tudo o que tinha. Primeiro, foi o marido, levado por um acidente de carro quando ela ainda era jovem. Depois, os filhos, vítimas de uma tragédia inexplicável — uma doença rara que nenhum médico conseguiu curar. Restaram-lhe os túmulos. E assim, dia após dia, ela ia ao cemitério não só para limpá-lo, mas para conversar com eles.

Seus pés conheciam cada caminho entre as lápides; suas mãos, cada inscrição gravada no mármore. Às vezes, sentava-se junto ao túmulo da família, com as pernas cruzadas, como se estivesse em uma reunião. Falava sobre o clima, os sonhos que tivera, as memórias que insistiam em retornar. E quando o silêncio parecia pesado demais, recitava versos de poemas que aprendera na juventude.

— Hoje vi um passarinho no portão — disse certa vez, ajeitando as flores no túmulo do filho mais novo. — Ele cantava tão bonito... Acho que foi você, não foi?

O vento soprava em resposta, e ela sorria, mesmo com os olhos marejados.

As pessoas da cidade comentavam sobre ela, algumas com pena, outras com admiração. “Dona Eulália é uma alma pura”, diziam. Mas havia também quem questionasse sua sanidade. “Quem passa a vida limpando um cemitério?”, perguntavam. Ela nunca ligou. Para Eulália, cuidar daquele lugar era a única forma de dar sentido à própria existência.

Certa vez, uma criança que visitava o túmulo da avó perguntou:
— Por que a senhora limpa tudo isso? Os mortos não podem ver.

Eulália sorriu, com a serenidade de quem carrega uma sabedoria simples e profunda.
— Talvez eles não vejam, meu bem. Mas eu vejo. E, enquanto eu puder cuidar deles, sinto que ainda estamos juntos.

Com o passar dos anos, Eulália ficou mais lenta. Seus passos perderam firmeza, suas mãos tremeram, mas ela continuava. Era como se soubesse que seu tempo estava acabando e quisesse deixar o lugar impecável antes de partir.

Um dia, não apareceu para o trabalho. Os vizinhos estranharam. Ao anoitecer, encontraram-na sentada junto ao túmulo da família, o lenço caído no colo, os olhos fechados. Partira em silêncio, exatamente como vivera.

No dia do enterro, o cemitério parecia mais limpo e arrumado do que nunca, como se cada pedra, cada flor, cada folha, carregasse um toque de gratidão. A lápide dela, colocada ao lado dos entes queridos, trazia apenas uma inscrição simples:

"Aqui descansa quem nunca deixou de amar."

Eulália se foi, mas o cemitério nunca mais foi o mesmo. As folhas que caíam pareciam dançar antes de tocar o chão, e as flores brotavam com mais vigor. Era como se o próprio lugar sentisse saudade da mulher que, com suas mãos cansadas e sua alma cheia de dor, transformou aquele espaço em um refúgio de amor eterno.
Lucileide Flausino Barbosa
Enviado por Lucileide Flausino Barbosa em 03/02/2025
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