O Prefeito e o Cadeirante
Na cidade de Santa Lúcia dos Montes, onde as serras encontravam o céu e o tempo parecia correr devagar, reinava um homem chamado Amâncio Duarte — prefeito eleito três vezes, conhecido mais pelo autoritarismo do que pelas obras realizadas. Era um homem de fala rude, olhar de superioridade constante e pouco ou nenhum tato com os menos favorecidos.
Dizia-se nas esquinas que Amâncio gostava de ser aplaudido, não questionado. E, como todo político que se acostuma ao poder sem empatia, achava que humildade era fraqueza. "Quem reclama, atrapalha", costumava dizer em suas reuniões fechadas.
Na mesma cidade morava Jonas Ribeiro, um cadeirante de 38 anos que perdera os movimentos das pernas ainda jovem, vítima de um tiro perdido durante uma briga que nem era sua. Apesar do trauma, tornou-se exemplo de superação. Aprendera informática por conta própria, criara um canal de vídeos motivacionais e, com a ajuda de doações, distribuía cestas básicas e lia livros em voz alta para deficientes visuais. Seu nome era respeitado em toda Santa Lúcia — menos por um homem: o prefeito.
As ruas da cidade eram esburacadas, sem rampas, sem sinalizações adequadas. A escola municipal, onde Jonas fazia palestras voluntárias, não tinha banheiro acessível. Cansado de tantos obstáculos, Jonas escreveu uma carta aberta ao prefeito, pedindo apenas o mínimo: dignidade.
Sem resposta, decidiu ir pessoalmente a uma audiência pública na prefeitura. Sentado em sua cadeira de rodas, com a carta em mãos, esperou por horas até ser autorizado a falar. Quando finalmente teve o microfone, a plateia se calou.
— Senhor prefeito, não estou aqui pedindo favor. Estou pedindo respeito. A cidade não foi feita só para os que andam. Existe um povo invisível nas cadeiras de rodas, nos andadores, nas muletas. Somos cidadãos. E cidadãos têm direitos.
Mal terminou a frase e Amâncio levantou-se, visivelmente irritado. Caminhou até Jonas, olhou para baixo e disse, com a voz carregada de sarcasmo:
— O senhor quer respeito, mas não respeita o tempo alheio. Se está descontente com as ruas, arrume outra cidade. E outra coisa: a prefeitura não é casa de caridade. Se fosse pra cuidar de aleijado, eu abriria um asilo.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Até os aliados políticos olharam para o chão. Jonas, porém, não respondeu com insultos. Olhou firme para o prefeito e disse, com voz trêmula, mas segura:
— Um dia, a vida vai lhe ensinar com mais força do que eu jamais conseguiria. E quando isso acontecer, espero que ainda exista alguém para lhe estender a mão.
As palavras ecoaram por dias. A cena foi gravada por um adolescente e se espalhou nas redes sociais. A repercussão foi imediata: jornais locais e nacionais denunciaram a atitude do prefeito. Pessoas de fora começaram a apoiar Jonas. Organizações de direitos humanos se mobilizaram, e o Ministério Público abriu uma investigação por crime de discriminação.
Mas o destino tem uma maneira estranha de devolver o que se planta.
Dois meses depois, durante uma inauguração apressada de uma obra inacabada, o prefeito Amâncio caiu de uma escada mal fixada e fraturou a coluna. A lesão foi grave. Irreversível. Amâncio se viu, de repente, prisioneiro da cadeira de rodas que um dia desprezara.
Vieram as dores. Veio o silêncio. Vieram os mesmos obstáculos que ignorara: as calçadas quebradas, os prédios sem acessibilidade, os banheiros impróprios. Tudo aquilo que antes era "desnecessário" agora se tornava urgência diária.
Certa manhã, já em casa, solitário, ouviu a campainha. Era Jonas.
— Vim ver como está. E trazer um presente — disse ele, estendendo um livro com dedicatória: “Aprendemos mais no chão da humildade do que no palanque do orgulho.”
Amâncio tentou falar, mas as palavras travaram. Jonas apenas sorriu.
— Não é fácil. Eu sei. Mas você pode aprender. Ainda há tempo.
A partir daquele dia, algo mudou. Pela primeira vez em anos, Amâncio ouviu mais do que falou. Pediu desculpas publicamente, e depois que deixou o cargo, começou a trabalhar, discretamente, em projetos de acessibilidade junto a ONGs locais.
Santa Lúcia dos Montes mudou. Não por causa de Amâncio, mas por causa da força silenciosa de alguém que nunca precisou se levantar da cadeira para se erguer como gigante.
Lucileide Flausino Barbosa
Enviado por Lucileide Flausino Barbosa em 05/05/2025