Confissões ao vento
O mais bonito retrato é o da própria natureza, pois, Deus com humildade fez sem tintas a sua beleza.
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A Greve das Lesmas
Num canto qualquer do mundo — mais precisamente no jardim da dona Nair — as lesmas decretaram greve geral. Sim, lesmas. Aqueles seres gosmentos, lentos, mal interpretados e alvo de chineladas covardes sempre que ousavam atravessar a soleira da cozinha.

Tudo começou quando a lesma Jurema, depois de ter sido expulsa de uma folha de alface com um grito histérico, resolveu convocar uma reunião extraordinária no fundo do quintal, sob a sombra generosa de uma couve. Estavam todas lá: a velha Lurdinha, o jovem Cledson, a ranzinza Zefinha e até o quase-mudo Zé Bolha, que só falava por sinais de baba.

— Chega! — gritou Jurema, com a autoridade de quem já sobreviveu a duas enxurradas e a um balde de sal. — Não rastejaremos mais para alimentar essa ingratidão humana!

O que se seguiu foi um motim de dar inveja a sindicato. As lesmas abandonaram as hortas, os canteiros, os vasos de samambaia. Formaram piquetes na beira do muro e carregavam plaquinhas escritas com baba vegetal: "Queremos respeito!", "Nem todo limo é crime!", "Abaixo o sal opressor!"

Sem lesmas, a vida no jardim virou um caos. A dona Nair, acostumada a acordar cedo e ver o rastro prateado das rebeldes nos ladrilhos, estranhou o sumiço. Primeiro pensou que fosse um milagre. Depois desconfiou de bruxaria. E quando a couve começou a crescer descontrolada, cheia de buracos causados por gafanhotos sem educação, ela entendeu: as lesmas faziam falta.

O mundo virou um lugar mais seco, mais limpo... e incrivelmente mais sem graça. As lesmas, apesar de lentas, eram artistas. Faziam seus desenhos abstratos com baba, suas performances noturnas ao som das gotas da torneira vazando. Sem elas, o jardim parecia um quadro inacabado.

Foi quando dona Nair, com um toque de humildade e uma caixa de folhas fresquinhas, colocou um cartaz no muro: “Voltem, lesmas. Prometo não mais usar sal.”

E voltaram. Lentamente, como é do costume, mas com dignidade. Reocuparam suas folhas, seus vasinhos, seus caminhos invisíveis. A greve terminara. Não porque tivessem pressa, mas porque agora sabiam: até as mais rasteiras das criaturas podem se levantar quando decidem não mais rastejar.

Lucileide Flausino Barbosa
Enviado por Lucileide Flausino Barbosa em 07/05/2025
Alterado em 07/05/2025
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